Quando se pensa em independência da Índia, a imagem de um senhor de óculos, pele curtida pelo sol e roupas simples logo aparece. Mohandas Karamchand Gandhi – chamado de Mahatma, “grande alma” – não foi general, não comandou exércitos, não escreveu tratados de guerra.
O que ele fez foi elevar a não-violência a método político de massa. Com ferramentas improváveis – jejum, marchas, boicotes, desobediência civil – ele pôs um império em xeque e redesenhou o século XX. Entender sua vida é entender como ética, coragem e organização popular podem mover estruturas que parecem imutáveis.
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ToggleInfância e formação (1869–1891): raízes em Porbandar, passos em Londres
Gandhi nasceu em 2 de outubro de 1869, em Porbandar, no atual estado de Gujarat, Índia britânica. O pai, Karamchand Gandhi, era dewan (primeiro-ministro) local; a mãe, Putlibai, profundamente religiosa, moldou sua sensibilidade espiritual. Em 1883, ainda adolescente, Gandhi casou-se com Kasturba, com quem teria quatro filhos. Em 1888, partiu para Londres para estudar Direito no Inner Temple; foi chamado à Ordem dos Advogados em 10 de junho de 1891, regressando à Índia no dia seguinte.
Essa formação jurídica e a disciplina pessoal aprendidas na Inglaterra iriam acompanhar seu método de argumentação e organização política.
O despertar sul-africano (1893–1914): racismo, organização e a invenção da satyagraha
Sem conseguir se firmar como advogado na Índia, Gandhi aceitou em 1893 um contrato na África do Sul, onde viveu por 21 anos. Ali, enfrentou a estrutura legal de discriminação contra indianos (e, de modo ainda mais brutal, contra negros africanos).
Foi nesse contexto que ele articulou sua comunidade, formou associações e experimentou um novo método de luta: a satyagraha, literalmente “força da verdade” – uma forma de resistência ativa e disciplinada, que confronta leis injustas sem recorrer à violência, mas aceitando as consequências da desobediência. Entre 1906 e 1914, campanhas de satyagraha contra medidas humilhantes (como registros compulsórios) resultaram em prisões em massa e negociações.
Essa escola prática forjou o dirigente que voltaria à Índia em 1915 com um repertório pronto para transformar um movimento.
Nos primeiros anos na África do Sul, Gandhi fez registros e declarações hoje amplamente criticados como racistas em relação aos africanos negros (uso do termo pejorativo “kaffir”, entre outros). Isso mostra um líder em evolução, não isento de contradições: sua visão foi sendo desafiada e ampliada ao longo do tempo. Entender o contexto não é justificar – é problematizar uma trajetória complexa. – Al Jazzira
A volta à Índia (1915–1919): da construção social ao primeiro choque com o Raj
Gandhi retorna à Índia e inicia aquilo que chamaria de “programa construtivo”: reorganizar o tecido moral e econômico de baixo para cima – khadi (fio e tecido locais), melhoria sanitária, educação básica, combate à intocabilidade, cooperação intercomunitária. Para ele, a independência política (swaraj) exigia autonomia social e econômica.
Em 1919, a aprovação dos Rowlatt Acts – que permitiam prisões sem julgamento – detonou protestos nacionais. Gandhi chamou um hartal (greve/férito cívico), ensaiando o primeiro grande confronto com o poder imperial no subcontinente.
Não-cooperação e autolimites (1920–1922): ética como estratégia
Em 1920, começa o Movimento de Não-Cooperação: boicote a tecidos britânicos, escolas, tribunais e honrarias, e renúncia a cargos. Milhões aderiram, mas Gandhi insistia em disciplina e não-violência. Em fevereiro de 1922, após a violência em Chauri Chaura, ele suspendeu a campanha – um gesto que frustrou muitos, mas que revela seu princípio: o meio (não-violência) não podia ser sacrificado ao fim (independência). Em março de 1922, foi preso por “sedição” e condenado a seis anos, dos quais cumpriu cerca de dois.
“Hind Swaraj” (1909) e a filosofia política de Gandhi: civilização, autogoverno e limites ao maquinismo
Publicado em 1909, “Hind Swaraj (Indian Home Rule)” é o manifesto em que Gandhi expõe sua crítica à “civilização moderna” e ao maquinismo desumanizador, propondo uma independência que é, antes de tudo, autodomínio ético e autossuficiência comunitária.
Não é um convite ao atraso, mas um alarme contra a transformação de pessoas em engrenagens. Muitos críticos o consideram idealista demais; mas o texto moldou sua visão do que seria uma Índia livre, com simplicidade voluntária, descentralização e responsabilidade cívica.
A Marcha do Sal (1930): quando um punhado de sal virou política de massa
O imposto sobre o sal – produto básico de pobres – simbolizava a intrusão do Estado imperial na vida cotidiana. Em 12 de março de 1930, Gandhi deixou o ashram de Sabarmati com um pequeno grupo de satyagrahis. Caminhou cerca de 240 milhas (385 km) até Dandi, na costa de Gujarat, onde, em 6 de abril, colheu sal do mar, violando a lei.

A marcha virou um evento nacional, com prisões em massa (dezenas de milhares). Mais que um gesto teatral, foi uma aula de pedagogia cívica: mostrou como uma lei injusta pode ser enfrentada de forma pública, coletiva e disciplinada.
Repressão, negociações e impasses (1931–1936): pactos difíceis, tensões internas
A campanha levou à prisão de Gandhi, mas também à mesa de negociação. Em 1931, ele participou de conversas em Londres (as Conferências da Mesa Redonda) e firmou o Pacto Gandhi–Irwin, que suspendeu momentaneamente a desobediência civil.
Os acordos, porém, não resolveram os pontos centrais: status constitucional da Índia, poderes provinciais e o problema das comunidades minoritárias. Nessas questões, emergiram tensões que marcariam os anos seguintes. (Para ensino médio: aqui é útil enxergar como qualquer transição de poder envolve múltiplos atores, agendas e concessões.)
Os fracos nunca perdoam; o perdão é atributo dos fortes. – Gandhi (publicado em Young India, 2 de abril de 1931)
Gandhi, Ambedkar e o Poona Pact (1932): democracia, casta e representação
Em 1932, o governo britânico anunciou o Communal Award, prevendo eleitorados separados para várias comunidades, inclusive os “deprimidos” (Dalits). B. R. Ambedkar, principal liderança dalit, apoiou a medida como via de representação política autônoma. Gandhi se opôs – temia a fragmentação do eleitorado hindu e iniciou um jejum até a morte na prisão.
O impasse resultou no Poona Pact: fim do eleitorado separado, mas ampliação de cadeiras reservadas a dalits nos assentos “gerais” por um período. Ambedkar considerou o desfecho um recuo político forçado; Gandhi acreditou ter evitado uma cisão perigosa. A controvérsia ecoa até hoje e é peça central para compreender os limites e ênfases diferentes de cada líder sobre justiça social.
“Quit India!” (1942) e o fim do Raj: entre guerra, partição e violência
Com a Segunda Guerra em curso, o Congresso Nacional Indiano exigiu a saída imediata dos britânicos. Em agosto de 1942, nasce o movimento “Quit India”. Seguem-se prisões de líderes e repressão, mas o sinal da História já estava dado: o império britânico no sul da Ásia era insustentável.
A saída, porém, viria com um preço humano altíssimo: a Partição da Índia e do Paquistão, entre 1946–47, com migrações em massa e violência intercomunitária, especialmente após a Direct Action Day (Calcutá, 1946), convocada pela Liga Muçulmana. Gandhi percorreu regiões em chamas, jejuou e mediou conflitos, tentando deter a carnificina.
Independência e tragédia (1947–1948): jejum pela paz e os tiros em Nova Délhi
A Índia tornou-se independente em 15 de agosto de 1947, enquanto Gandhi continuava em trabalho de pacificação. Em setembro de 1947, um de seus jejuns conseguiu estancar a violência em Calcutá; em janeiro de 1948, um novo jejum pressionou por trégua em Délhi. Três dias depois, em 30 de janeiro de 1948, às 17h17, durante uma reunião de oração no Birla House, Gandhi foi assassinado por Nathuram Godse, extremista hindu que o acusava de “ceder” aos muçulmanos e “enfraquecer” a nação. A morte provocou choque mundial e marcou o fim de uma era – o método que ele inventara sobreviveria à sua ausência.
A engrenagem moral: ahimsa, satyagraha, swaraj e o “programa construtivo”
Quatro ideias sustentam o edifício gandhiano:
- Ahimsa (não-violência): não é passividade; é recusar-se a ferir, inclusive no discurso, e disciplinar o próprio corpo para que a ação política não reproduza a lógica do inimigo.
- Satyagraha (força da verdade): método ativo que busca a conversão do adversário – ou, ao menos, expõe a injustiça de modo incontestável. A eficácia vem da coragem pública de quem desobedece e aceita a pena, revelando o arbítrio.
- Swaraj (autogoverno): mais que independência formal, é autonomia pessoal e comunitária – daí a crítica ao maquinismo e à civilização do consumo em Hind Swaraj.
- Programa construtivo: um “currículo de cidadania” para o dia a dia – fiação de khadi, saneamento, educação básica, unidade intercomunitária, combate à intocabilidade, indústrias de aldeia, economia local. Em vez de esperar leis, Gandhi queria que as pessoas praticassem já a sociedade que desejavam.
Estratégias de mobilização: do sal ao tear, da aldeia à nação
Para estudantes, é didático observar como Gandhi transformou ideias em táticas:
- Símbolos acessíveis: o sal (imposto injusto que todos entendiam) e o khadi (roupa tecida à mão) criaram signos de pertencimento e resistência que qualquer pessoa podia adotar.
- Disciplina coletiva: marchas, piquetes, boicotes – tudo regido por códigos estritos de conduta. Violência isolada? Suspensão da campanha, mesmo a contragosto, para preservar o método.
- Jejum: arma moral perigosa, que exigia delicada leitura de contexto. Gandhi jejuava contra si mesmo e seus – um gesto que podia inspirar ou pressionar, e por isso é objeto de debate até hoje.
Críticas e controvérsias: entre o ideal e o real
Nenhuma figura histórica escapa a críticas – e Gandhi não é exceção:
- Casta e representação: Ambedkar denunciou o Poona Pact como derrota política dos dalits; para ele, sem instrumentos eleitorais próprios, igualdade material seria eternamente adiada. Esse debate é central para pensar cidadania substantiva.
- Racismo nos anos sul-africanos: as declarações iniciais de Gandhi sobre africanos negros são inaceitáveis e abriram, no século XXI, debates sobre estátuas e homenagens. Há evidências de mudança posterior de visão, mas o registro permanece e precisa ser estudado criticamente.
- Economia e modernização: sua crítica ao maquinismo e ênfase na aldeia foram questionadas por quem via na industrialização e em reformas estatais o caminho para romper desigualdades. Ainda assim, sua defesa da simplicidade, da sustentabilidade e da economia local ganhou nova força em debates contemporâneos.
Legado na Índia: independência, democracia e uma ética pública
O legado interno de Gandhi é inseparável da independência de 1947 e também do esforço por pacificar a transição mais violenta da história moderna do subcontinente. Sua influência permeou o movimento nacional, a linguagem política da Índia livre e a agenda social de reforma (ainda incompleta) – da luta contra a intocabilidade ao ideal de governo próximo das comunidades. Até hoje, o 2 de outubro é lembrado mundialmente como Dia Internacional da Não-Violência, reconhecimento global do método que ele encarnou.
Legado no mundo: de Atlanta a Joanesburgo, a força de um método
Nenhum líder fora da Índia apropriou-se tanto do método gandhiano quanto Martin Luther King Jr. O pastor de Atlanta viu em Gandhi “o método de reforma social” que faltava ao ideal cristão do amor: boicotes, marchas, prisões em massa para deslegitimar o regime segregacionista, sem reproduzir a violência. King visitou a Índia, escreveu sobre o “país de Gandhi” e sustentou, até o fim, que a não-violência era “a luz guia” do movimento. Essa ponte explica parte do século XX: de Montgomery a Washington, a gramática da satyagraha atravessou oceanos.
O assassinato: razões, autores e reverberações
A morte de Gandhi reúne elementos didáticos para analisar radicalização política. Nathuram Godse, ligado a círculos nacionalistas hindus, via em Gandhi um obstáculo a uma Índia unida sob uma identidade exclusiva; responsabilizava-o por concessões a muçulmanos e pelo sofrimento da Partição.
Em 30 de janeiro de 1948, Godse aproximou-se durante a oração vespertina e disparou três vezes. Julgado e condenado, foi enforcado em 1949. A comoção nacional reforçou, por um tempo, o repúdio à violência e o apego a uma visão plural da Índia. Para a História, fica a pergunta: por que métodos de paz despertam ódios tão intensos?
O que estudantes do ensino médio podem levar de Gandhi
- Métodos importam: ele demonstrou que fins nobres não justificam meios destrutivos – e que meios coerentes produzem legitimidade.
- Política é ética em público: jejum, disciplina e autocontrole não eram misticismo: eram técnicas para reorganizar pessoas em torno de um bem comum.
- Não idealizar, mas aprender: reconhecer as falhas (racismo inicial, impasses com Ambedkar, utopismo econômico) permite aprender com mais honestidade.
- Atualidade: em tempos de redes, polarização e discursos de ódio, a ideia de confrontar injustiças sem desumanizar o outro soa, ao mesmo tempo, difícil e indispensável.
Conclusão: a coragem de insistir na humanidade
Gandhi transformou a política ao mostrar que corpos desarmados, organizados e orientados por convicções morais, podem fazer tremer impérios. Sua vida não foi perfeita; tampouco seu projeto foi inteiramente realizado. Mas o método que legou – feito de verdade, disciplina e empatia – continua disponível, aqui e agora, para quem escolher a coragem de insistir na humanidade como caminho de mudança.
Fontes de pesquisa
- Encyclopaedia Britannica – biografia geral, cronologia e conceitos (satyagraha, Marcha do Sal, papel no movimento nacional, jejuns finais e assassinato). (Encyclopedia Britannica)
- Inner Temple (Londres) – data de admissão de Gandhi à Ordem dos Advogados (10/06/1891). (Inner Temple)
- “Hind Swaraj (1909)”, textos integrais e estudos. (Mahatma Gandhi)
- “Constructive Programme: Its Meaning and Place” – versão em PDF (1941/45) e materiais de referência. (jmu.edu)
- Poona Pact (1932) – análise enciclopédica do acordo Gandhi–Ambedkar e do debate sobre eleitorados separados. (Encyclopedia Britannica)
- King Institute (Stanford) – Gandhi e a influência sobre Martin Luther King Jr. (ensaios, artigos e biografias). (Instituto Martin Luther King)
- History.com – síntese do assassinato de Gandhi e contexto imediato. (HISTORY)
- Debates contemporâneos sobre racismo nas obras iniciais de Gandhi – reportagens e análises. (Al Jazeera)
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