A arqueologia brasileira perdeu uma de suas maiores vozes. Niède Guidon, mulher de coragem inquebrantável e mente visionária, faleceu no dia 2 de junho de 2024, aos 91 anos, deixando um legado que redefine não apenas nossa compreensão do povoamento das Américas, mas também a própria noção de resistência científica e cultural. Sua vida foi uma saga de descobertas, lutas contra o descaso e uma incansável defesa do patrimônio arqueológico brasileiro.
Nascida em Jaú, São Paulo, em 12 de março de 1933, Niède Guidon formou-se em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP) e, ainda jovem, partiu para a França, onde se especializou em arqueologia pré-histórica na Universidade de Paris (Sorbonne). Sua carreira acadêmica floresceu no exterior, mas seu coração sempre esteve no Brasil—especificamente no sertão do Piauí, onde suas pesquisas revolucionariam a arqueologia mundial.
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ToggleA Descoberta que Mudou Tudo: Serra da Capivara
Em 1973, Niède Guidon retornou ao Brasil para investigar pinturas rupestres no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí. O que ela encontrou ali não eram apenas registros artísticos de povos antigos, mas evidências de uma presença humana muito mais antiga do que a ciência tradicional aceitava. Suas escavações revelaram vestígios de ocupação humana datados de até 60 mil anos, desafiando a teoria clássica de que o continente americano havia sido povoado há apenas 12 mil anos pelo Estreito de Bering.
Essa descoberta colocou Niède no centro de uma das maiores polêmicas científicas do século XX. A comunidade acadêmica internacional resistiu, mas ela persistiu, acumulando provas incontestáveis: ferramentas líticas, fogueiras ancestrais e centenas de pinturas rupestres que narravam a vida de sociedades complexas. Sua pesquisa não apenas reescreveu a pré-história das Américas, mas também provou que o Brasil foi um dos berços da civilização humana no continente.
A Batalha pela Preservação: Criando o Parque Nacional Serra da Capivara
Niède não era apenas uma cientista brilhante; era uma guerreira da preservação. Percebendo que o patrimônio arqueológico da Serra da Capivara estava ameaçado pela erosão, caçadores e pela expansão agrícola, ela travou uma batalha incansável para transformar a região em uma área protegida. Em 1979, após anos de insistência, o governo brasileiro criou o Parque Nacional Serra da Capivara, hoje Patrimônio Mundial da UNESCO (1991).
Mas a vitória veio com novos desafios. O parque sofria com a falta de recursos, incêndios criminosos e o descaso político. Niède não se rendeu. Criou a Fundação Museu do Homem Americano (FUMDHAM) em 1986, uma instituição que não apenas preserva o acervo arqueológico, mas também gera empregos e promove educação na região mais pobre do Brasil.

Prêmios e Reconhecimento Internacional
A coragem e o trabalho de Niède Guidon renderam-lhe reconhecimento mundial. Entre suas principais honrarias estão:
- Ordem Nacional do Mérito Científico (1995) – A mais alta condecoração científica do Brasil.
- Prêmio Príncipe Claus (2005) – Concedido pela Holanda a personalidades que lutam pela cultura e desenvolvimento.
- Medalla de la Paz (2010) – Outorgada pelo governo mexicano por sua contribuição à ciência e à cultura.
- Doutor Honoris Causa por diversas universidades, incluindo a Universidade Federal do Piauí (UFPI) e a Universidade de Paris.
Apesar das homenagens, Niède nunca buscou fama. Seu foco sempre foi a ciência e a preservação. Em uma entrevista, ela declarou:
“Não trabalho para receber prêmios, trabalho para que as gerações futuras saibam de onde vieram. O passado não é só história; é identidade.”
A Última Batalha: Saúde e Falecimento
Nos últimos anos, Niède enfrentou problemas de saúde, mas nunca abandonou sua missão. Mesmo com mobilidade reduzida, continuou supervisionando pesquisas e lutando por recursos para o parque. Seu falecimento, no entanto, não foi inesperado. Ela morreu em São Raimundo Nonato, Piauí, cidade que adotou como lar e onde dedicou mais de 50 anos de sua vida.
O velório foi realizado na sede da FUMDHAM, cercado por colegas, alunos e moradores locais que a viam não apenas como uma cientista, mas como uma mãe do sertão. O governador do Piauí decretou luto oficial de três dias, e tributos vieram de pesquisadores de todo o mundo.
O Legado que Fica
Niède Guidon não foi apenas uma arqueóloga; foi uma revolucionária. Suas descobertas desafiaram dogmas, sua persistência salvou um patrimônio inestimável e seu amor pelo sertão transformou uma região esquecida em um farol de conhecimento.
Ela costumava dizer:
“A ciência não é feita de certezas, mas de perguntas. E eu prefiro morrer questionando do que viver aceitando respostas prontas.”
Essa era Niède Guidon: incansável, corajosa, à frente de seu tempo. Seu corpo se foi, mas sua obra permanece—nas pinturas rupestres da Serra da Capivara, nas mentes que ela inspirou e no futuro que ela ajudou a construir.
Que a terra lhe seja leve, mestra. E que seu exemplo continue a iluminar a arqueologia, a educação e a luta pelo conhecimento.
Fonte: Super Interessante