No sábado, 13 de setembro de 2025, o universo musical brasileiro e mundial silenciou-se momentaneamente. Aos 89 anos, partiu o multi-instrumentista, compositor e arranjador Hermeto Pascoal, o inigualável “Bruxo dos Sons”. Sua passagem, confirmada pela família através das redes sociais, encerra uma jornada de quase sete décadas dedicadas à busca incansável por uma “música universal”, sem fronteiras ou rótulos, onde o som de uma chaleira ou o vento nas folhas podia se transformar em uma melodia complexa e emocionante.
A causa da morte foi revelada como complicações decorrentes de um quadro avançado de fibrose pulmonar, após uma internação no Hospital Samaritano, no Rio de Janeiro. A notícia reverberou por todo o planeta, trazendo à tona a memória de uma trajetória marcada pela genialidade, pela liberdade criativa e pela capacidade de transformar o cotidiano em arte sonora.

A partida de Hermeto Pascoal, no entanto, não é um fim, mas a consagração de um legado. Sua obra, que transita com fluidez entre o jazz, a música popular brasileira, a música erudita e as tradições regionais, permanece como um farol para futuras gerações de músicos. A nota de falecimento da família expressou, com singeleza e poesia, a essência do artista: “Quem desejar homenageá-lo, deixe soar uma nota no instrumento, na voz, na chaleira e ofereça ao universo”. É a música, e o som em todas as suas manifestações, que Hermeto nos deixou como herança.
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ToggleRaízes Alagoanas e a Invenção da Escuta
A história de Hermeto Pascoal começa em Lagoa da Canoa, no interior de Alagoas, em 22 de junho de 1936. Filho de um sanfoneiro, Hermeto Pascoal Oliveira da Costa nasceu com uma condição que, para muitos, seria uma barreira: o albinismo e o estrabismo. Essa particularidade, que o impedia de trabalhar na roça, o aproximou de um universo sonoro que se tornaria a sua grande paixão e ofício. A deficiência visual aguçou sua audição, permitindo-lhe perceber nuances e frequências que a maioria das pessoas ignorava.
Sua formação musical foi autodidata e completamente atípica. Na efervescência do sertão, onde a vida é moldada pela natureza, Hermeto aprendeu a “ouvir” o mundo ao seu redor. Instrumentos convencionais como a sanfona de oito baixos, que começou a tocar ainda criança, e a flauta, foram apenas o ponto de partida. Sua verdadeira escola era o ambiente: o vento, o canto dos pássaros, o som da água na lagoa, os animais do sítio. Ele transformou o campo em seu laboratório de experimentação, aprendendo a extrair música de tudo o que o cercava, desde bules e brinquedos a um simples copo d’água.
Aos 15 anos, já era músico profissional, apresentando-se em festas e rádios com o irmão José Neto. A busca por novas oportunidades o levou primeiro a Recife e, posteriormente, aos grandes centros urbanos do sudeste, como Rio de Janeiro e São Paulo. Foi nesses ambientes que sua genialidade começou a se moldar em composições mais elaboradas e a ser notada por outros músicos, levando-o a integrar grupos instrumentais importantes como o Quarteto Novo, um dos marcos da música instrumental brasileira.
A Construção do “Bruxo dos Sons” e a Música Universal
A década de 1970 marcou um ponto de virada na carreira de Hermeto. Sua liberdade criativa, sua abordagem anárquica e sua capacidade de improvisação o renderam o epíteto de “Bruxo dos Sons”. Em 1971, a colaboração com o lendário trompetista Miles Davis, que o descreveu como “o músico mais impressionante do mundo”, catapultou Hermeto para o reconhecimento internacional. A gravação de sua composição “Igrejinha” no álbum Live-Evil de Miles Davis, onde Hermeto também participou em outras faixas, solidificou sua reputação como uma força inovadora no jazz global.
No Brasil, Hermeto Pascoal se consolidou como uma figura central da música instrumental, colaborando com gigantes como Elis Regina, Sivuca, Egberto Gismonti e Tom Jobim. A diversidade de suas parcerias reflete a versatilidade de sua obra. Ele transitava com a mesma destreza por diferentes gêneros e linguagens musicais, recusando-se a ser enquadrado em categorias limitantes. Foi ele mesmo quem cunhou a expressão “música universal” para descrever sua arte, defendendo a ideia de que a música não tem adjetivos e deve ser sentida em sua totalidade.
A música de Hermeto era um reflexo de sua personalidade: livre, espontânea e surpreendente. Em uma entrevista, ele afirmou que a música, assim como tudo que é inteligente, não pode ter adjetivos, pois precisa ser sentida. Sua religião era a música, um dom divino que ele usou para criar e inspirar. A genialidade de Hermeto residia na capacidade de romper com as convenções, de quebrar as regras de forma intuitiva, assustando e, ao mesmo tempo, encantando os músicos que tocavam com ele.
Curiosidades do Artista
A vida e a obra de Hermeto Pascoal são recheadas de momentos inusitados e curiosidades que reforçam sua imagem de gênio irreverente:
- A Música da Lagoa: Uma de suas experiências mais emblemáticas foi a “Música da Lagoa”, em que músicos borbulham água e tocam flautas dentro de uma lagoa. Em uma performance registrada em vídeo, Hermeto chega a cantar com a boca submersa em um copo d’água.
- O Calendário do Som: Em 1996, Hermeto realizou um projeto grandioso e ousado: compor uma música por dia durante todo o ano. Esse esforço monumental resultou em mais de 400 partituras, um testemunho de sua inesgotável criatividade.
- O Cabelo Longo: A famosa cabeleira branca e longa de Hermeto tem uma história curiosa. Ele deixou o cabelo crescer durante uma temporada nos Estados Unidos, onde a agenda de gravações intensas não lhe dava tempo de ir ao barbeiro. Quando se viu no espelho, gostou do resultado, e sua visão poética da vida transformou o cabelo em “antenas” para captar os sons do universo.
- A Homenagem a Ilza: Em 2024, já com a saúde fragilizada, Hermeto lançou o álbum “Pra Você, Ilza”, uma declaração de amor e homenagem à sua companheira de 46 anos, Ilza Souza Silva, que havia falecido em 2000. O álbum, que conquistou o Grammy Latino de Melhor Álbum de Jazz Latino/Jazz, é um exemplo da profunda sensibilidade por trás de sua experimentação sonora.
- Grammys e Doutorados: A genialidade de Hermeto foi reconhecida por diversas premiações e instituições. Além dos três Grammys Latinos, ele recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Juilliard School, nos Estados Unidos, e das Universidades Federais da Paraíba e de Alagoas, sua terra natal.
- A Despedida nos Palcos: Em junho de 2025, poucos dias antes de completar 89 anos, Hermeto realizou sua última apresentação no Brasil, no Circo Voador, no Rio de Janeiro. A ocasião se transformou em uma grande festa de aniversário, celebrando a vida e a música de um artista que nunca se afastou dos palcos.
A Obra e o Legado de um Gênio
A discografia de Hermeto Pascoal é vasta e diversificada, refletindo sua evolução como artista. De álbuns aclamados como A Música Livre de Hermeto Pascoal (1973), Slaves Mass (1977) e Hermeto Pascoal e Grupo (1982), a projetos mais recentes, como o já mencionado Pra Você, Ilza, sua obra é um mapa da exploração sonora. A liberdade e a improvisação, marcas registradas de sua música, são exemplificadas em gravações onde ele tocava não apenas instrumentos convencionais, mas também chaleiras, galinhas de borracha e outros objetos inusitados, como em sua memorável apresentação no festival The Town, em 2023.
O legado de Hermeto, no entanto, vai muito além de suas gravações. Ele se manifesta na inspiração que ele proporcionou a gerações de músicos, no Brasil e no exterior. Sua ousadia em misturar ritmos, sua capacidade de extrair música do inusitado e sua visão de uma “música universal” sem fronteiras desafiaram o conservadorismo e abriram novos caminhos para a expressão artística. A disciplina por trás da aparente anarquia, onde a liberdade era fruto de um profundo conhecimento musical, é uma lição que fica para todos que o estudam.
Hermeto Pascoal também foi um arranjador e educador musical dedicado. Seu trabalho em orquestração é reverenciado, e sua paixão por transmitir seu conhecimento e sua visão musical às novas gerações foi constante. A própria existência da Areninha Cultural Hermeto Pascoal, em Bangu, no Rio de Janeiro, local de seu velório, é um testemunho da importância de seu trabalho para a comunidade.
Uma Sinfonia Sem Fim
A partida de Hermeto Pascoal deixa um vazio na música brasileira, mas sua ausência é preenchida pela riqueza de sua obra e pela força de seu legado. O “Bruxo dos Sons” nos ensinou a ouvir o mundo de uma forma diferente, a enxergar a música em cada canto da vida, do canto dos pássaros ao som de uma panela. Sua recusa em se prender a rótulos e sua busca incessante pela “música universal” são um lembrete de que a verdadeira arte reside na liberdade e na autenticidade.
Hoje, enquanto o Brasil e o mundo se despedem de um de seus maiores gênios, a melodia de Hermeto continua a ressoar. A família, ao convidar a todos para homenageá-lo com um som, reforçou que a música dele é atemporal e está em tudo. Daqui a duzentos anos, como previu um de seus familiares, a música de Hermeto ainda será lembrada e celebrada. A sinfonia universal de Hermeto Pascoal pode ter perdido seu maestro, mas suas notas continuam a ecoar para sempre.
Fontes:
Gazeta do Povo – “Hermeto Pascoal, ícone da MPB, morre aos 89 anos”
Rolling Stone Brasil – “Hermeto Pascoal, o bruxo da música brasileira, morre aos 89 anos”
CNN Brasil – “Morre Hermeto Pascoal: relembre carreira do “bruxo” da música brasileira”






