Do entrudo português ao desfile das escolas de samba: como a evolução das celebrações carnavalescas no Brasil moldou a cultura popular, com paralelos ao luxo e ao mistério do Carnaval de Veneza.
Atualização do texto originalmente publicado em 24 de Fevereiro de 2018 por Jason Guedes
O Carnaval é, sem dúvida, uma das celebrações mais representativas da cultura brasileira. Seus desfiles, blocos, fantasias e músicas são símbolos que atraem turistas do mundo inteiro e criam um elo entre passado e presente, refletindo as influências sociais, políticas e culturais que o transformaram ao longo dos anos.
Embora hoje o carnaval carioca seja sinônimo de samba e escolas de samba desfilando nos sambódromos, sua origem é muito mais complexa e rica do que parece à primeira vista. Para entender as celebrações modernas, é preciso voltar ao início, quando os primeiros entrudos foram trazidos pelos colonizadores portugueses e misturados com as tradições africanas e indígenas, criando uma festa popular que resistiu aos tempos e se reinventou.
Neste texto, vamos explorar o nascimento e a evolução do carnaval carioca, traçar paralelos com o famoso Carnaval de Veneza, e analisar as influências das culturas europeia, africana e indígena nesse processo de transformação. Além disso, também discutiremos a importância social do carnaval como um espaço de expressão cultural, resistência e celebração da identidade brasileira.
Índice
ToggleO Surgimento do Carnaval no Brasil: Entre o Entrudo e os Cordões
A primeira manifestação carnavalesca no Brasil foi o entrudo, uma festa trazida pelos colonos portugueses no período colonial. O entrudo era uma brincadeira popular que envolvia a prática de lançar farinhas, água e até excrementos nas pessoas. Era uma festa de rua, com poucos limites, e tinha um caráter de zoação que refletia a natureza irreverente e permissiva das tradições populares europeias.
Embora o entrudo fosse originalmente uma festa de origem portuguesa, suas práticas foram se modificando ao longo do tempo à medida que as influências africanas e indígenas se incorporaram à cultura popular brasileira.

Porém, o entrudo não era bem visto pelas elites, principalmente porque suas características eram associadas à violência e ao descontrole. A partir do final do século XIX, com o processo de modernização da cidade do Rio de Janeiro e a busca por uma “civilização” mais alinhada aos padrões europeus, a festa começou a ser perseguida pela polícia. O prefeito Pereira Passos, no início do século XX, conduziu um processo de reforma urbana que demoliu cortiços e ampliou as ruas do centro da cidade, gerando um deslocamento da população pobre para os morros cariocas.
Esses grupos excluídos da nova ordem social não ficaram quietos. Mesmo com a proibição de práticas populares como o samba, a capoeira e o candomblé, as camadas mais baixas da sociedade carioca continuaram a criar formas de expressão carnavalesca. Assim nasceram os cordões e os ranchos, que se tornaram importantes no cenário do carnaval carioca.
Os cordões eram uma espécie de bloco de rua, formado por afrodescendentes, com características dos ritos religiosos africanos e elementos da cultura popular. Já os ranchos tinham uma forte influência nordestina, sendo originados das celebrações natalinas, e incorporaram os instrumentos de percussão e as músicas típicas da região. No entanto, o sucesso dos ranchos não foi imediato. Com o tempo, eles precisaram se adaptar ao gosto da elite carioca e acabaram por abandonar parte da sua essência afro-brasileira para se tornar mais “aceitos” pela classe dominante.
Esse fenômeno de adaptação e “branqueamento” cultural foi um dos fatores que levaram à chamada reaterritorialização dos ranchos. O termo, criado pela historiadora Cristina Tramante, descreve o processo pelo qual os ranchos, antes fortemente ligados à cultura afro, passaram a adotar características mais “europeias”, como uniformes e a presença de mestres-salas e porta-bandeiras, criando uma nova identidade para os desfiles.
Essa nova configuração, aliada a um ritmo de marcha mais sincopado e melódico, marcou uma mudança significativa na dinâmica do carnaval carioca, e pavimentou o caminho para a criação das escolas de samba.
O Carnaval de Veneza: Um Outro Olhar para a Festa
É interessante também observar como o Carnaval de Veneza, embora situado em um contexto europeu, compartilha certos elementos com o carnaval carioca, especialmente em sua fase inicial. O Carnaval de Veneza remonta ao século XI e, ao longo de sua história, foi associado a uma série de rituais de máscaras, bailes de luxo e festas exclusivas.
Embora o Carnaval de Veneza e o Carnaval carioca tenham origens diferentes, ambos compartilhavam a característica de ser um espaço de transgressão social, onde as barreiras de classe eram temporariamente rompidas e todos podiam “ser alguém diferente”, ainda que de maneiras muito distintas.
O Carnaval de Veneza sempre foi uma festa marcada pelo luxo e pelo mistério, com as famosas máscaras que permitiam à pessoa se esconder atrás de uma identidade fictícia. Em comparação, o carnaval carioca, apesar de também ser um espaço de “disfarces” e liberdade, sempre teve uma marca de celebração popular e coletiva, onde as ruas se tornaram os maiores palcos de interação entre as classes sociais.
Enquanto em Veneza os bailes eram exclusivos e voltados para a elite, no Rio de Janeiro o Carnaval, apesar de ser inicialmente controlado pela classe dominante, sempre foi uma festa de rua, de ocupação do espaço público pelos mais humildes. Essa diferença entre os carnavais evidencia a diversidade de formas e significados atribuídos à festa ao longo do tempo, refletindo as diferentes condições sociais e culturais de cada local.
A Ascensão das Escolas de Samba e a Consolidação do Carnaval Carioca
Em 1930, uma nova revolução carnavalesca começou a tomar forma no Rio de Janeiro. Um grupo de músicos liderados por Ismael Silva fundou a primeira escola de samba no bairro Estácio de Sá, um reduto popular da cidade. Esse movimento foi crucial para a criação da escola de samba como conhecemos hoje, que rapidamente se espalhou por toda a cidade e, depois, pelo Brasil.
As escolas de samba surgiram como uma resposta à exclusão dos blocos populares das grandes avenidas e passaram a ser as protagonistas do carnaval carioca. As agremiações, incentivadas pelo governo de Getúlio Vargas, passaram a organizar desfiles mais estruturados, com temas históricos, políticos e sociais. O samba enredo, uma característica das escolas de samba, passou a substituir o samba de terreiro nas apresentações, marcando uma ruptura com as origens mais informais e espontâneas do samba.

A partir dessa nova fase, o samba enredo passou a ser o grande responsável pela popularização e pela consolidação do carnaval carioca como uma festa nacional. As escolas de samba começaram a usar o samba como uma ferramenta para contar a história do Brasil, abordando temas como a escravidão, as tradições culturais africanas, a história indígena e os movimentos sociais, sempre com uma estética vibrante e envolvente.
A Influência das Culturas Africana, Indígena e Europeia no Carnaval Carioca
O carnaval carioca, como resultado de uma longa fusão de diferentes culturas, reflete a complexidade e a pluralidade da formação do Brasil. A cultura africana teve uma influência fundamental, principalmente através do samba, das danças e dos ritmos de percussão. Os afro-brasileiros, como já mencionado, foram os primeiros a criar manifestações carnavalescas mais distantes da elite, como os cordões e os ranchos.
Além disso, as tradições indígenas também estão presentes no carnaval, tanto nas representações simbólicas quanto nas manifestações de resistência cultural. O uso de elementos como as penas e as cores vibrantes das fantasias, por exemplo, são uma forte herança das culturas indígenas.
Por outro lado, a cultura europeia, principalmente a portuguesa, deixou sua marca no entrudo, mas também nas influências dos bailes de máscara e na organização mais “elegante” do carnaval, como no caso dos primeiros bailes de máscaras e das sociedades carnavalescas que se espalharam pela cidade.
Conclusão: O Carnaval Como Reflexo da Identidade Brasileira
O carnaval carioca, com sua enorme diversidade de manifestações e sua evolução ao longo do tempo, é um reflexo da formação social e cultural do Brasil. Ele é, antes de tudo, um espaço de expressão popular, onde as identidades podem se afirmar e se transformar. Ao lado de outras festas populares do país, como o Círio de Nazaré e o Festival de Parintins, o carnaval é um dos maiores símbolos da cultura brasileira.
Do entrudo português ao samba das escolas de samba, a festa passou por diversas fases, cada uma delas marcada por influências e lutas sociais que refletem a complexidade do Brasil. O carnaval não é apenas uma celebração de folia, mas um ato de resistência, reinvenção e, principalmente, de afirmação de identidade. Se o Carnaval de Veneza remete ao luxo e ao mistério, o carnaval carioca é a expressão da alegria do povo, da diversidade e da celebração das raízes culturais que construíram o Brasil.
O carnaval, seja no Rio de Janeiro ou em Veneza, continua sendo uma festa de transformação, onde todos podem, por alguns dias, ser quem quiserem e celebrar a vida em sua forma mais exuberante.
Quer saber mais sobre o Carnaval Carioca? Entre no site da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e veja todos os detalhes desse evento incrível e que representa muito da história e da cultura do Brasil.