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“O aperreio do cabra que o excomungado tratou com má-querência e o Santíssimo não deu Guarida”, este é o tema do samba enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Imperatriz Leopoldinense, campeã do carnaval carioca de 2023. Mas de fato do que se trata e quem seria o indivíduo que a história contada na avenida se refere?

É curioso observar que apesar de ser um personagem real da nossa história, ele ganhou roupagem de mito e no século XXI vem novamente sendo humanizado, se é que é possível fazer isso com aquele que não foi aceito nem pelo diabo e nem por Deus.

Um personagem tão humano que acabou construindo uma relação amorosa e gerou descendentes. Durante o desfile e as comemorações do título na escola de samba estavam presentes a filha e as netas dessa figura histórica. É por isso que começamos o nosso texto apresentando o personagem através da perspectiva de Dona Expedita, sua filha, de 90 anos de idade.

Dona Expedita

Nascida em 1933 no meio do Sertão nordestino, com os pais famosos e em fuga constante da polícia, dona Expedita conviveu com bandidos sanguinários até os seus cinco anos de idade quando presenciou a chacina feita pelo Tenente João Bezerra contra o bando do seu pai. Após esse momento, sendo apenas uma criança foi levada e criada pelo próprio Bezerra até os oito anos, quando enfim foi entregue ao seu avô materno e ao tio que nunca havia visto antes.

Aprendeu sobre a Fazenda, sobre o sertão e sobre a vida. Aos 18 anos casou-se e foi mantida no anonimato até ser descoberta ano depois como sendo filha do temido Capitão Ferreira da Silva, a quem ela tinha muito medo, por causa das armas, das roupas e das histórias aterrorizantes que ouviu sobre o bando terrível que ele comandava.

Já que no início do nosso artigo já citei como nosso personagem termina e também seu próprio nome, agora vamos para a história completa e entender como foi o começo, seu desenvolvimento e de fato como se deu o seu fim, aliás o seu fim e o início do mito.

Enfim, a Imperatriz Leopoldinense tratou da história contada na literatura de cordel sobre um homem que foi tão mal e cruel que após a sua morte o diabo o expulsou do inferno e ele se direciona a Deus e todos os santos não o aceitam no céu. Uma história própria do nordeste brasileiro, bem localizado no sertão da caatinga, sobre o personagem histórico Virgulino Ferreira da Silva, nascido em 1898 na Serra Talhada em Pernambuco.

Virgulino Jovem

O indivíduo que classe média, com 10 irmãos e que sabia trabalhar com couro, gostava de tocar sanfona e de dançar, desde pequeno já tinha um problema no olho direito e foi ficando cego com o tempo devido ao espinho de uma planta própria da região e que assim como ele era capaz de sobreviver na caatinga atacando para proteger aquilo que é essencial para sua sobrevivência.

Ainda menino tinha uma grande amizade com seu vizinho, Zé Saturnino, mas os anos foram se passando e as duas famílias foram se distanciando e disputando terras próximas.

As famílias Saturnino e Ferreira da Silva viviam em brigas violentas por inúmeras motivos, mas principal deles era a terra para produzir no sertão. Até que um dia a polícia interferiu numa disputa e o pai de Virgulino foi assassinado.

Alguns dizem que isso foi por volta de 1914, Luitgarde Cavalcanti afirma que o pai dele só faleceu em 1921. E que Virgulino junto com dois irmãos já havia entrado no bando de cangaceiros por volta de 1916. O que provavelmente levou a polícia até o local foi o envolvimento dele com o banditismo do Cangaço, e vai ser exatamente este motivo que vai levar o nosso personagem para a vingança e para o comando do seu próprio bando.

Para Cavalcante, Virgulino já havia entrado na marginalidade antes mesmo da morte do pai e que a narrativa de anteceder a morte do patriarca em alguns anos para justificar a criminalidade é uma forma de escudo ético, como se ele fosse um grande herói em busca da Vingança. Vale destacar aqui que a mãe da autora já tinha sido vítima do cangaço, comandado pelo nosso personagem, e não havia sido morta ou até mesmo tocada por ele apenas por ser uma descendente de holandeses e considerada uma “raça refinada”.

Ao entrar no cangaço ele agora era do bando do Senhor Pereira e cometeu crimes principalmente na região de Pernambuco e da Paraíba até 1922 quando o chefe do grupo vai ao encontro de Padre Cícero e determina que após aquela reunião ele começaria a sua aposentadoria e o grupo precisaria de um novo líder.

Virgulino nesse momento já não era mais chamado assim nem pelo Senhor e nem pelo bando, aliás já era um ser conhecido pelo seu codinome e temido em todo o Nordeste. Naquela altura ele já havia se transformado em Lampião, devido a velocidade do seu tiro com o fuzil, que mantinha a noite iluminada.

Lampião conseguiu intimidar os pequenos produtores e comerciantes do Sertão nordestino ao mesmo tempo que era bajulado e adorava os grandes coronéis. Os grandes fazendeiros pediam verba para o governo federal para combater o cangaço, compravam armas e munições para vender ao bando de Lampião, obviamente em troca de serviços prestados contra os seus inimigos políticos e o proprietário de terras que eram de interesse dos coronéis.

Esse movimento dos coronéis com o cangaço motivou um enorme êxodo rural pelo medo. No artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional, Lorenzo Aldé, inicia seu texto com uma história brutal para representar de fato o criminoso sanguinário que era Lampião.

“Um homem armado invade uma casa em busca de comida a dona humilde viúva da zona rural não tem o que oferecer tomado por um ataque de fúria um invasor dá uma surra na mulher e depois se volta para o jovem filho da viúva que presencia tudo. Ou então em prática seu gosto por rituais de sadismo gratuito: enfie o órgão genital do menino numa gaveta e a tranca com chave. Depois até a fogo na casa. Desesperado o rapaz é obrigado a cortar o próprio pênis para salvar a vida.”

A quantidade de crimes cometidas por Lampião nunca de fato foram registrados em sua totalidade, mas ele não ligava para isso, pois havia a proteção dos coronéis e a distância do Governo Federal que naquele momento estava instalado no Rio de Janeiro.

Até que em 1926, Padre Cícero aparece em cena de novo e dessa vez em conjunto com o Doutor Floro Bartolomeu, com eles havia o convite para que Lampião impedisse a Coluna Prestes e em troca ele receberia o título de Capitão do exército brasileiro e um Arsenal do mais moderno fuzil que as nossas tropas poderiam ter, chamado popularmente de fuzil do papo amarelo ou oficialmente um fuzil Mouser.

Lampião percebeu naquele momento que ele era mais forte do que a mão do Estado dentro do Sertão nordestino e que o título de capitão era falso e não receberia Anistia sobre todos os seus crimes cometidos anteriormente. Obviamente ele aceita o convite pois era de seu interesse possuir o Arsenal e esbanjar de forma debochada e irônica o título de capitão. A partir desse momento ele se torna mais poderoso, mais sanguinário, mais violento, mais conquistador.

Dois anos se passaram e ele encontra uma figura feminina que despertou por ele uma admiração e que com apenas um olho bom pode perceber a beleza. A jovem baiana de 18 anos, Maria Gomes de Oliveira, era casada com o próprio primo desde adolescente, mas o relacionamento era péssimo e eles viviam brigando, ao ponto de Maria ir à casa de seus pais quase todos os dias para se afastar do marido, tanto que ela era conhecida como Maria de Dea (sua mãe) e não como a Maria do seu marido.

O seu pai era coiteiro de Lampião, abrigava o bando do cangaceiro sempre que era necessário. Claro que foi assim que ela conheceu Lampião e se apaixonou pela figura, inclusive largando o seu marido para ser a primeira cangaceira, o que motivou outros homens do bando a levarem mulheres para dentro no grupo criminoso.

Maria só recebe o apelido de bonita após a sua morte, mas era uma líder que conseguiu amenizar a violência do bando e agregou mulheres que sofriam com o clima semiárido do Sertão e com as longas caminhadas pelas terras por onde os cangaceiros passaram.

Nos próximos 10 anos Lampião e Maria Bonita continuaram a expansão sanguinária do grupo mas na metade desse tempo tiveram uma filha, aliás a única filha do casal, nesse momento começaram a sedentarizar o grupo nas margens do rio São Francisco, pois o cerco contra eles ia se tornando cada vez mais apertado.

Lampião e Maria Bonita

O casal, a filha e mais nove cangaceiros por segurança se escondiam na Grota do Angico, mas não demorou muito para que eles fossem traídos e o seu paradeiro entregue aos seus perseguidores.

Em vários estados pelo Nordeste haviam recompensas para aquele que conseguisse matar Lampião em seu bando, nesse período Getúlio Vargas já havia implementado o estado novo e claramente a sua ditadura jamais permitiria o cangaço saqueando terras pelo Nordeste.

O tenente João Bezerra chegou ao local no dia 28 de julho de 1938, pegando o pequeno grupo de surpresa, todos os adultos foram mortos e as suas cabeças foram arrancadas do corpo e colocadas em barris de querosene com sal, para que fossem preservadas e levadas até as grandes capitais nordestinas, assim exibindo a grande glória do próprio Tenente e do Estado que finalmente conseguiram deter o banditismo de Lampião e seu bando.

A primeira exibição foi em Maceió e a última em Salvador onde as cabeças ficaram guardadas em museu até 1968, somente 30 anos depois a família conseguiu o direito de enterrar a cabeça como uma cerimônia Cristã. Durante 22 anos Lampião liderou o seu bando de cangaceiros em ataques sangrentos por sete estados do Nordeste, foi aliado de coronéis corruptos, estuprou, matou, sequestrou e fez o que bem quis pela caatinga, finalmente o terror acabou.

cabeças lampião

Mas por que Lampião, tornou-se um grande mito do Nordeste e o cangaço é visto como um banditismo social, em alguns momentos comparando a figura de Virgulino com Robin Hood. Lembrando que ele nunca havia roubado dos ricos para dar aos pobres.

A resposta é mais simples do que parece, ele era patrocinado pelas elites agrárias do Nordeste, as mesmas que durante o período democrático da história republicana do Brasil começam a colocar o seu sobrenome nas campanhas eleitorais e como não era possível afastar essas figuras da história sanguinária de Lampião, eles então resolvem transformar o personagem em um mito.

Os irmãos Melquíades e Ezequias da Rocha eram coiteiros de Lampião e exercendo os seus papéis no legislativo e na literatura decidiram transformar Lampião em uma figura emblemática do Nordeste e aproximou a imagem dele ao banditismo social.

Assim como Cavalcante já havia citado foi produzido algo como um escudo ético para criar a figura do criminoso que faz o bem. Quase que apagando inteiramente a violência causada pelo cangaço para justificar que este movimento era para defender o Nordeste do sofrimento, do esquecimento e do isolamento causado pela república do café com leite e pelo governo Vargas.

O que Imperatriz Leopoldinense trouxe em seu enredo foi o resgate dessa figura de um Lampião tão violento que nem mesmo foi aceito no inferno. Precisamos lembrar que este tema já foi tratado em inúmeras Mídias e de diversas formas. Existem filmes produzidos desde os anos 30 sobre o Cangaço, aliás livros importantes também foram produzidos incluindo os livros escritos e publicados pela neta do casal de cangaceiros. O espinho do Quipá - Lampião a história, de 1997 e a obra “De Virgulino a Lampião de 1999.

Parabéns a Imperatriz Leopoldinense pelo título de 2023, pelo tema escolhido e respeitosamente tratado, além de conseguirem a presença de Dona Expedita no alto dos seus 90 anos de idade. Para o nosso leitor vou deixar o link onde você pode ouvir o samba-enredo campeão carioca deste ano.

Imperatriz campeã

Fontes: ALDÉ, Lorenzo. A sedução dos bandidos: De Lampião a Leonardo Pareja, o que nos atrai nesesses fora da lei? in Revista de História da Biblioteca Nacional, Ano 6, nº 68. 

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